2666

  • autoria: Roberto Bolaño
  • tradução: Eduardo Brandão
  • leitura em andamento (p. 595/856)

    comecei a ler 2666 sem saber praticamente nada sobre o livro. só tinha ouvido falar que era a obra-prima do Bolaño, autor recomendadíssimo pela minha Amiga Genial©. dele, eu já tinha lido O espírito da ficção científica, que não me disse muita coisa; mas, como ando muito empolgada com literatura latina, quis tentar de novo. & fiz bem, muito bem, porque estou amando essa leitura. porém, entretanto, todavia... em alguns momentos é um livro extremamente brutal, e que combinado à essa distopia em que vivemos, me trava. explico.

    o livro é dividido em cinco partes, com narrativas independentes. a primeira, A parte dos críticos, deslizou por mim feito manteiga: além de ser curtinha, narra as desventuras de um grupo de acadêmicos europeus especialistas em um autor alemão, Benno Von Archimboldi. um italiano, um francês, um espanhol e uma inglesa são obcecados pelo misterioso Archimboldi e vivem se encontrando em simpósios universitários, o que acaba desenhando relações mais e mais pessoais entre eles. em determinado momento, alguns deles vão para a cidade (fictícia) de Santa Teresa, no norte do México, buscando o rastro do Archimboldi. até aqui parece um romance "normal". a segunda seção, A parte de Amalfitano, foca em um professor chileno que mora em Santa Teresa e leciona na universidade local. Óscar Amalfitano serve de guia aos críticos da primeira parte, então há uma ligação clara entre uma seção e outra, ainda que o estilo da escrita seja bem diferente. a narrativa fica mais misteriosa, meio filosófica, meio fantasmagórica. tem um poeta em um manicômio, um livro de geometria no varal, vozes do além, coisas do tipo. também é nessa seção que começa a ganhar destaque a onda avassaladora (e não fictícia) de feminicídios na região de Sonora, que preocupam Amalfitano e sua filha, Rosa. na terceira seção, A parte de Fate, um jornalista negro estadunidense vai à Santa Teresa acompanhar uma luta de boxe e acaba envolvido com figuras supeitas da cidade, possivelmente relacionadas com cartéis de tráfico de drogas e outros crimes. entre uma dose de mescal e outra, Oscar Fate se apaixona por Rosa Amalfitano. parece quase um romance de detetive.

    aí chega a quarta seção, A parte dos crimes, que é onde estou há aparentemente 84 anos. são umas trezentas páginas de descrições de cadáveres de mulheres violentadas, torturadas, assassinadas e absolutamente abandonadas pela sociedade & a justiça local. alguns policiais fazem esforços (mínimos) pra investigar as mortes, mas para a maioria é só questão de tentar identificar o corpo, quem sabe evitando que ele vá parar na vala comum ou na faculdade de medicina, talvez investigar/torturar os suspeitos mais prováveis e fazer piadinhas machistas. tenho fé que o Bolaño tem uma razão-de-ser pra essa angústia, mas está complicado. chegou um momento em que eu comecei a desconfiar que estava lendo sobre a mesma mulher mais de uma vez, mas já foram tantas que não consigo mais separar os horrores. sei que talvez a intenção seja essa, de sobrecarregar tanto que o próprio leitor já não seja capaz de dar conta de tratar cada uma como um indivíduo, como acontece com a população de Santa Teresa. adicione a isso que realmente há uma epidemia de feminicídios & desaparecimentos sem resposta no México (no primeiro dia que eu assisti uma das coletivas diárias do AMLO, tinham desaparecido CINCO ônibus de imigrantes que seguiam para a fronteira com os Estados Unidos) & que semana passada uma vendedora foi estuprada em um brechó aqui na esquina de casa.

    violência sexual é um assunto particularmente aterrador pra mim. Lembro da primeira vez que tive contato com esse tipo de pavor; eu tinha uns 8 ou 9 anos e estava indo com minha mãe e uma vizinha na locadora do bairro. Passamos por um terreno baldio e elas falaram que uma moça tinha sido encontrada ali, morta, com um cabo de vassoura enfiado na vagina. elas falaram meio horrizadas, mas também meio conformadas, porque a periferia é assim, né? o choque de imaginar essa cena me deu pesadelos por dias. até hoje tenho muita dificuldade de ver filmes ou ler livros que descrevem estupros, me deixa muito mal.

    o voto de confiança que estou dando para o Bolaño ao continuar a leitura é enorme, mas tudo que passei no livro até agora compensa. são tramas com fios que se tocam nas horas mais inesperadas, delicadezas tão grandes quanto esses hororres. e, depois dessa seção medonha, ainda tem A parte de Archimboldi. vamos ver se paga a pena (apesar de saber, como o Drexler bem diz, que o negócio é amar a trama mais que o desenlace).


  • Comentários

    1. Menina. Que maravilha nostálgica isso aqui! Me levou aos pontapés pra meados dos anos 2000, quando o mundo era feito de esperanças e blogs.

      Nunca li nada do Bolaños, mas já me interessei pq eu gosto de coisas que incomodam - talvez eu não tenha coração.

      Ansiosa pela próxima!

      ResponderExcluir
    2. SIM, Pati! também me sinto numa viagem no tempo.
      até pensei em virar tiktoker de livros, mas acho que esse barco já zarpou antes mesmo de eu me tornar uma senhora, porque SEMPRE preferi por escrito hahaha

      ResponderExcluir

    Postar um comentário