mandíbula

  • autoria: Mónica Ojeda
  • tradução: Silvia Massimini Felix
  • leitura concluída: ☆☆☆☆

    existe um limite pra quanto horror latino a gente pode ler sem virar o chupacabra/a medusa/um morto vivo ou entrar pra um culto ou mergulhar no Rio Belém & sair criatura radioativa ou encontrar o próprio duplo num ônibus lotado em horário de pico? se sim, estou pertinho dele. mas como escapar, especialmente dessas mulheres divinas-demoníacas como a Mariana Enriquez & a Fernanda Melchor?

    nesse terrorzin equatoriano recomendado pela minha amiga genial©, uma professora de Ensino Médio (pobre alma) sequestra a aluna & a gente acompanha o sequestro em si & mais mil minicoisas que levaram até ele, como um culto sinistro de adolescentes & um prédio abandonado com uma sala branca & as piores melhores amigas que você já viu & os horrores de ser tornar mulher & creepypastas & ataques de pânico & maternar em frangalhos & mandíbulas mordentes em todo canto. começa meio devagar, mas quando embala, vai a milhão.

    me lembrou, em parte, as coisas horríveis que as garotas fazem umas com as outras no meu romance favorito da Atwood, Olho de gato, porque ninguém sabe melhor onde dói mais do que quem tem as mesmas dores que você, né? a infância & a adolescência são microuniversos no qual a gente vive uma vida inteira. mais ou menos inteiros, saímos dalí pra esse outro lugar que o adulto habita, só com as cicatrizes da batalha. mas enquanto as escoteiras canadenses estavam em relativo isolamento & com um repertório de torturas mais limitado, pras adolescentes de Guayaquil o céu é o limite: elas perambulam entre uma escola bilíngue religiosa & as próprias casas luxuosas & o clube de campo & o tal prédio abandonado & festas universitárias & o consultório do terapeuta &, principalmente, o abismo de areia movediça que é a internet.

    pois bem: a sequestradora é Miss Clara, professora de Língua & Literatura que já tinha sido sequestrada(!) por alunas de uma escola anterior & que tem uma relação bem complicada com a ideia de mãe-filha-aluna-professora, pra dizer o mínimo. como alguém que já deu aula pra adolescentes, testemunho: é preciso muita autoconfiança & autorregulação, além de uma boa pitada de autodestruição, pra encarar o olhar deles, & a Clara mal aguenta se olhar no espelho. a adolescente sequestrada é a Fernanda, irmã de irmão morto, claramente apaixonada pela (ex)-melhor amiga Anne, que é, sem dúvidas, a estrela da história.

    Anne, sardenta & sedutora, é líder de um grupinho de meninas que passa o tempo livre inventando desafios perigosos & criando histórias de terror & adorando o Deus Branco de útero carnívoro que rege a Idade Branca da adolescência, em que a infância vira Uma Outra Coisa. se você quer dar uma olhada no pavor absoluto que é a imaginação de uma menina que consumiu Lovecraft & creepypastas sem moderação, não vai encontrar lupa melhor que o ensaio que a Anne escreve pra coitada da Miss Clara, que só tinha pedido um comentário de um conto do Poe. um trechinho:
    O cabelo indisciplinado. Estrias. Sangue. Aquela coisa incompleta e indefinida que a enoja em nós também é muito repulsiva para mim. A infância termina com a criação de um monstro que rasteja à noite: um corpo desagradável que não pode ser educado. A puberdade nos transforma em homens e mulheres lobos, ou hienas, ou répteis e, quando há lua cheia, vemos como nos perdemos a nós mesmos (o que quer que sejamos).

    aqui tem: raio-x decorando a parede, animais, uma coroa que é uma mandíbula de tubarão, mordidas, mães nada maternais, piscinas, a pequena sereia, úteros em fúria, canibalismo mais ou menos simbólico, nudez, dores, slenderman & outras lendas urbanas, vulcões, casas trancadas, rituais, andar na beira do precipício, um revólver.

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