nuestra parte de noche (nossa parte de noite)

  • autoria: Mariana Enriquez
  • leitura concluída (há tempos): ☆☆☆☆☆ + ❤❤❤ + 😭

    quando este singelo bloguinho surgiu, eu já tinha sido atropelada pelo Nuestra parte de noche há meses, mas não posso perder a chance de falar dele porque está entre os meus favoritos do ano. portanto, nada melhor que começar assim meus posts especiais com as melhores leituras de 2021, né?

    a Mariana foi um dos motivos que me levou, junto da minha amiga genial©, para a FLIP 2019. jornalista, contista, romancista, pesquisadora, aficcionada por cemitérios & rock & Stephen King, toda trabalhada no look gótico, ela é a autora dark da minha devoção. já caí por ela no primeiro conto do magnífico As coisas que perdemos no fogo, publicado por aqui pela Intrínseca com tradução do José Geraldo Couto. eu sempre gostei de histórias de suspense & terror, tanto com uma pegada sobrenatural quanto mais realista, mas o que a Mariana fez nos contos desse livro foi achar um equilíbrio sublime (sólido & gasoso & sólido novamente), em cima de uma navalha afiadíssima, entre essas duas coisas. a gente lê assombrado, levando tapa depois de tapa, se perguntando se aquilo é loucura, visagem, sprito ou apenas mais um dia na américa latina.

    (como já disse o Junot Díaz pela boca do Yunior em A fantástica vida breve de Oscar Wao, "Quem pode ser mais sci-fi que nós?". pros latinoamericanos, a realidade histórica & cotidiana é mais fantástica & improvável que qualquer ficção.)

    lá na FLIP, ouvimos La Enriquez duas vezes: na Casa Submarino, em que ela tratou da perspectiva pela qual ela vê o terror, em especial as leituras que fez do Stephen King, e no último dia do evento, na mesa Santo Antônio da Glória. foi maravilhoso ver uma autora do calibre dela pensando a própria produção & o papel da literatura "de gênero", dissecando como os terrores sobrenaturais do King podem ser traduzidos como coisas mundanas (vide Cemitério maldito ser sobre luto e It sobre as dores & traumas do amadurecimento) & como isso alimenta a literatura que ela produz, muito baseada em fatos reais desdobrados & ampliados com uma megalupa crítica. ela bateu na tecla de que todas as crueldades que ela foi acusada de colocar nos contos foram tiradas de manchetes de jornal. a gente só não deu a mínima porque as vítimas não tinham nome nem rosto, eram "só" indigentes da cidade. pra que inventar sustos, se viver numa cidade como Buenos Aires é um apavoramento permanente? nunca vou esquecer de uma das últimas coisas que ela disse, que na minha cabeça foi algo como:
    "Imaginem uma mente humana, perfeita, criativa, capaz de tudo. E presa num corpo que adoece, envelhece e morre. Isso é terror."
    (um aparte: depois da fala na Casa Submarino, conversei um pouco com ela com meu espanhol burritônico & peguei um autógrafo na minha programação - ela escreveu "gracias por leerme". ¡AMIGA, GRACIAS YO! 😭).

    depois disso, me obriguei a ler Los peligros de fumar en la cama em espanhol mesmo, já que ainda não saiu a tradução aqui, apesar de ter sido publicado originalmente antes do As coisas & ter entrado no shortlist do Booker International 2021. mais contos ferozes, mais spritos, mais cidades & almas sebosas. & quando saiu o Nuestra parte de noche, claro, me joguei a ler em espanhol sem perspectivas de esperar a tradução. (um mês depois de eu ter me lascado em febres & tremores & dicionários, a tradução da Elisa Menezes saiu no clube Intrínsecos... enfim.)

    & agora, pra alma que aguentou essa introdução sem-fim (sim, TERGIVERSO!), chegamos ao romanção de 666+1 páginas com o qual a Mariana ganhou prêmios mil & me espancou até a beira da morte durante as férias desse ano. no tempo que eu levei pra ler esse calhamaço, minha vida se resumiu a comer, dormir & acompanhar o Juan tentando escapar com o filho Gaspar das garras de um culto de ricaços em busca da vida eterna & dispostos a fazer qualquer acordo com A Escuridão em troca disso.

    de novo: o que mais terror que as ditaduras latinoamericanas & seus desaparecidos? o que mais pavoroso que ser desafiado a entrar em uma casa abandonada que faz zumbidos que nem todo mundo escuta? o que mais horrível de encarar que o fato de a elite permanecer intocável ao longo das crises & panes sociais que arrasam quem está por baixo, porque a riqueza é um país à parte? o que gela mais o sangue do que tentar evitar, inutilmente, que seu filho passe pela dor que você já passou? o que mais aterrorizante que acompanhar em tempo real a tragédia da menina Omayra, morrendo lentamente diante das câmeras (não Googlem isso se quiserem dormir hoje)?

    em cada uma das seis partes do livro, temos as vozes contrastantes & complementares de personagens únicos & complexos, cheios de culpa, dor, defeitos, qualidades, brutezas & delicadezas gigantescas. road-trip familiar? temos! assim como avós bizarros, cerimônias medonhas, altares à morte & pegação com homens mulheres espíritos. é bildungsroman que você quer? também tem! crianças vendo TV, perdendo parentes, fazendo amizades & sofrendo todos os sofrimentos de deixar de ser criança, com um toque adicional de poderes sobrenaturais. se ainda for pouco, temos também um dossiê jornalístico recheado de crimes políticos; herdeirinhos fazendo intercâmbio em Londres pra aprender técnicas de ocultismo & se drogando & fazendo amizade com o David Bowie(!); cirurgias cardíacas; cultura queer & a epidemia de AIDS dos anos 80; infantes apaixonados pelos amiguinhos; dimensão paralela cheia de ossos; quedas de luz; zumbidos; sombras etc. etc. etc. pensa numa coisa de que você tem medo. provavelmente aparece em alguma página.

    5/5, favorito do ano, li em desespero, recomendo recomendo recomendo.

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