páradais

  • autoria: Fernanda Melchor
  • leitura concluída: ☆☆☆☆

    não sei se ler é a palavra apropriada para o que a gente faz com os livros da Melchor. acho que eles é que leem a gente, que atravessam pele carne osso sprito como uma onda radiológica e/ou ultramagnética, pronta pra devastar & devassar tudo. o horror de saber já na primeira página o que vai acontecer, mas ainda ter que encarar o pavor crescendo por parágrafos & parágrafos sem fim até culminar num clímax digno de filme de terror: uma escadaria grandiosa & dor & sangue & um grito preso na garganta.

    como no Temporada de furacões, esse livro é um banho de violência embebida em doçura, feito uma armadilha pra formigas que é só água & açúcar mas que tem como único objetivo matar. mas, enquanto o Temporada tinha mil vozes pra reconstruir um crime em uma cidadezinha mexicana que poderia ser qualquer cidadezinha latina, Paradais tem uma única voz louca pra se livrar da culpa de um crime em uma metropolezinha mexicana que poderia ser qualquer metropolezinha latina. é só encontrar um condomínio de luxo colado em uma favela que o cenário está pronto, & daí puxar um par de personagens espelhados, que se repelem & se aproximam com a mesma força. no caso, temos dois adolescentes, um pobre & um rico, ambos se sentindo vítimas de mil opressões & dispostos a fazer uso do pouco poder que têm para causar o maior dano possível (cada um deles é uma bomba feita de pregos dentro de uma lata de cerveja vazia). como a Melchor disse em entrevista, qualquer um de nós pode ser vítima sem perder o poder de também fazer vítimas.

    além do soco no estômago que é ver as pecinhas se encaixando num quebra-cabeça grotesto (& o pior, ver o avesso do quebra-cabeça cheio de possibilidades perdidas), é absolutamente impactante o uso magnífico que a Melchor faz da linguagem (eu sei que são muitos adjetivos, mas faltam adjetivos pra explicar o tamanho do que ela faz). ir de frase em frase é como assistir a um filme com um olho aberto & o outro fechado, mas sem conseguir pausar; é descer uma escadaria no escuro, correndo & aos tropeções; é ser revirado numa onda & não saber o que é em cima & o que é embaixo pra conseguir escapar da correnteza. sofri um tanto lendo (ou tentando ler) um espanhol cheio de gírias & construções superespecíficas do México, mas a bruxaria de palavras que ela faz é tão grande que a gente só vai seguindo, levado na enxurrada, & não dá a mínima se não entendeu meia dúzia de palavras por página. acompanhar o ritmo do pensamento do Polo (16 anos, favelado, talvez pai, com certeza filho, jardineiro & faz-tudo num condomínio de luxo, sem perspectivas nem planos, bêbado 99% do tempo, dominado por mulheres & louco pra dominar mulheres) é abrir mão de entender tudo, de qualquer jeito.

    nesse livro rápido & rasteiro (muito rápido, muito rasteiro), temos: condomínio chique, vizinhos podres, palavrões a perder de vista, calor absurdo, temporais, suor, cartéis, família, desejo, vício, dinheiro, falta de dinheiro, responsabilidade, falta de responsabilidade, incel espinhento, mães enfezadas, silver tape, madames, velhos, os filhos pagam os pecados dos pais, cerveja litrão (em mexicano: caguama), casa mal-assombrada (embrujada!), falso-paraíso, a-culpa-não-é-minha.

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