temporada de furacões

  • autoria: Fernanda Melchor
  • tradução: Antônio Xerxenesky
  • leitura concluída: ☆☆☆☆☆ + 💀 + ❤

    foi por esse livro que eu assinei a Tortilla, clubinho de livros latino-hispânicos, & também foi ele que me fez pensar que talvez era hora de abrir um espaço pra registrar minhas leituras. explico. pra começar: Temporada de huracanes ganhou e/ou foi finalista de vários prêmios em 2020 (eu sei, eu sei) & pra mim tinha caído naquela categoria de "livros latinos que saem em inglês & bombam na gringa, mas nunca são publicados no Brasil", como o Umami da Laia Jufresa ou o Los peligros de fumar en la cama, da Mariana Enriquez (o Umami eu acabei lendo em inglês; pro Peligros, me joguei no espanhol, entre lágrimas). então, quando vi que ele ia sair pela Mundaréu, me joguei no clubinho. terminei a leitura em janeiro (logo depois de Piranesi, o que me deixou temerosa pros coitados dos livros que viriam na sequência) & fiquei: GENTE?! SOCORRO!!?!? FUI ATROPELADA POR UM TRATOR?! meus stories no instagram com listinhas de palavras não eram o suficiente pra falar o quanto essas (meras) 208 páginas me afetaram.

    então, aqui vamos nós: nesse romance curtinho, mas cheio de potência cultural, social, linguística & narrativa, a Fernanda Melchor apresenta uma cidadezinha mexicana que podia ser qualquer cidadezinha latina, onde a pobreza & a microelite convivem daquele jeitinho que nós, brasileiros, bem sabemos: o de cima sobe, o de baixo desce, & quem não tem mais pra onde descer fica chafurdando numa mescla de horror & luta cotidiana & desalento. todos os personagens que a gente encontra no livro estão absolutamente esfomeados por qualquer tipo de amor & não sabem nem como nem onde encontrar. aí, já viu, né? dá merda.

    a narrativa é daquele meu tipinho favorito: várias perspectivas sobre um mesmo fato (um assassinato!) que vão se juntando menos como um quebra-cabeças & mais como os cacos de um espelho. cada parte do livro foca em um personagem que sabe um pouquinho mais sobre o que aconteceu com a Bruxa do vilarejo, encontrada semidegolada & apodrecendo num barranco úmido por umas crianças da cidade (já na segunda página do livro!). essa mulher/criatura/monstra, O Outro por excelência, é fonte de fofocas, mistérios, mentiras, medo, admiração & desconfiança. procurada por alguns pra ajudar a curar as dores do corpo, da alma & do coração, & por outros pra ganhar um trocado fácil em troca de um boquete, essa pessoa sem nome, nem passado, nem futuro é o olho do furacão que destroça todo mundo. a cada página que passa a gente fica sabendo mais sobre ela, mas sem nunca ter uma imagem clara. só cacos & sombras & reflexos distorcidos.

    em um lugar definido pela falta & pelo "pode mais quem bate mais", todos parecem ter culpa. são personagens horríveis, mesquinhos & violentos. mas também fraturados & capazes de imensidões sem fim de delicadeza. seja a garota abusada pelo padrasto, o marido sustentado pela esposa prostituta, o machão apaixonado pelo melhor amigo, a neta que inveja a liberdade (& o carinho) que o primo recebe da avó, a mulher que tem que criar a filha fruto de um estupro sob os olhares odientos da cidade, o garoto que tem um caso com um engenheiro na esperança de conseguir um emprego longe dali... quem tem mais opções pra escapar desses cantos onde vivem encolhidos? a vítima de uma história é vilão de outra & todos receberam cartas horríveis no Grande Jogo. & tudo isso numa terra mole, pegajosa, prestes a deslizar sobre todo mundo no próximo temporal.

    ainda por cima, a linguagem que a Melchor usa (& o Xerxenesky traduz usando tudo quanto é nível de registro) é avassaladora, como uma avalanche de lama que vai arrastando o leitor sem qualquer pausa ou respiro. vejam só:
    [...] e um dia, caralho, casualidades da vida!, por pura zoeira, ia passando pela rua essa louca, que de vez em quando aparecia em Villa toda vestida de preto, com aquele véu que cobria seu rosto por completo, a quem chamavam de Bruxa, e sua mãe apontou para ela e disse a Brando: viu só? Aí está a bruxa para levar você, e Brando ergueu o olhar e se deparou com aquele espectro grotesco, e saiu correndo feito doido pra dentro de casa, onde se escondeu debaixo da cama, e passou um bocado de tempo antes que o coitado se atrevesse a brincar na rua de novo, tamanho era o medo que a Bruxa provocou nele; um medo que, com o tempo, conseguiu varrer para debaixo do tapete de sua memória, mas que ressurgia toda vez que precisava ir com seus amigos para a curtição na casa [dela]. Porque a Bruxa sempre pagava as brejas e o trago, e às vezes até as drogas, desde que o pessoal ficasse na sua casa, de onde ela nunca saía. Um casebre que se erguia em meio aos canaviais de La Matosa, logo atrás do complexo do Engenho, uma construção tão feia e repelente que Brando achava que era uma carapaça de uma tartaruga morta mal sepultada na terra [...].

    por isso & por mais detalhes que seriam spoilers imperdoáveis: 5/5, um dos melhores do ano, horrível & lindo, cheio de dor, pobreza, amor, drogas, comunidade, perdas, tretas de família, ervas misteriosas, silêncios, quartos trancados, músicas do Luis Miguel, botecos sinistros, punhetas pagas & gratuitas, partilhas & vingança.

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