piranesi

  • autoria: Susanna Clarke
  • leitura concluída (primeiro livro de 2021!): ☆☆☆☆☆ + ❤! + 😵

    essa foi minha leitura de virada de ano. comecei um pouco antes do natal e terminei dia 2 de janeiro, em choque, meio afogada & arrastada por ondas & marolas em escadarias mil que eu estava vendo até em sonho. Piranesi apareceu em quase todas as listas de melhores livros de 2020 na gringa & tem essa capa sinistríssima, combo que vocês já devem saber que é uma isca irresistível pra mim. então fui lá, comprei o ebook & caí no meio de um labirinto que estava tanto fora quanto dentro do protagonista mais querido que vocês possam imaginar.

    pense: tem um sujeito escrevendo um diário a duras penas, totalmente desmemoriado, registrando seu cotidiano em um castelo-labirinto-cidadela-quadro-do-Escher do qual ele não consegue (nem parece querer) sair & que é periodicamente inundado por marés que ele tenta desvendar & sistematizar. janelas? algumas. escadas? muitas. estátuas? incontáveis, de tudo quanto é tamanho & representando de criaturas místicas a cenas cotidianas. a vibe da Casa é essa:


    Giovanni Battista Piranesi. "Carceri d'invenzione", c. 1749–50.


    a única companhia humana ocasional que ele tem é o Outro, um homem que aparece & some quando bem entende, trazendo provisões mínimas & pouquíssimas respostas às muitas perguntas do Piranesi (nome dado pelo Outro & que, como vocês podem ver pela referência do desenho aí em cima, é tanto sagaz quanto cruel).

    ler uma história de solidão & autorreflexão desse nível, no ápice da pandemia, depois de meses de isolamento social, foi uma experiência & tanto. mas além da imagem de um labirinto lindo & incompreensível se refletir tanto nessa nossa realidade distópica de 2020-2021, pra mim foi ainda mais marcante (& horrível & realista) ver, em primeira mão, como alguém fragilizado & sensível pode ser atingido por um tipo de correnteza muito pior que a das marés: a manipulação de alguém que te vê como uma simples ferramenta, um meio para se alcançar um fim, um objeto sem qualquer subjetividade, quando tudo que você tem é subjetividade.

    pra nós, leitores, ainda que tenha fins misteriosos, o tratamento horrível dado pelo Outro ao Piranesi é óbvio & duro & impossível de resistir. mas, ao mesmo tempo, apesar de estar em uma posição de desvantagem absoluta (não ter informações básicas, nem recursos, nem perspectiva de escapatória), ele encontra maneiras de se opor & se reconstruir & ter esperança & tratar os outros (sejam pessoas vivas, restos humanos, peixes, pássaros ou estátuas) com a doçura & o cuidado devido a algo inigualável.

    não vou entrar em mais detalhes porque metade do charme da narrativa está em ficar perdido com o Piranesi & tentar antecipar, pouco a pouco, as revelações que ele encontra. mas recomendo, muitíssimo, essa leitura que tem estrelas, estátuas gigantescas, ondas, penas, cadernos, barras de cereal, rituais místicos, medo, degraus, lutas de poder, mistérios, dores & afetos sem bordas definidas, como o rastro que uma onda deixa na areia depois de ir embora.

    em tempo: a edição brasileira está para sair no começo de novembro, pela editora Morro Branco, com tradução da inigualável Heci Regina Candiani, que já fez maravilhas com a Atwood e a LeGuin & tem a mão perfeita pra linguagem da Susanna Clarke. estou só esperando chegar na livraria da minha vizinhança pra ir buscar pessoalmente, reler & talvez fechar o ano como comecei: rolando escada abaixo & amando cada degrau entre as costelas.

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