companion piece

  • autoria: Ali Smith
  • leitura concluída: ☆☆☆☆☆

    quem é freguês daqui ou me conhece de Outros Carnavais sabe que eu sou superAtwoodiana. mas o que pode ser menos óbvio é que eu também sou absolutamente apaixonada pelo que a Ali Smith faz & estava tão ansiosa por esse lançamento quanto pelo Burning questions da Atwood (uma das leituras atuais, aliás!). a Ali é a narradora perfeita dos horrores do presente & os livros do quarteto das estações (criminosamente ainda não traduzidos no Brasil) estão sem qualquer sombra de dúvida entre os melhores livros que já li. olha só:

    - Autumn foi lançado 2016, no fervo da votação do Brexit. Daniel, um senhorzinho de mais de 100 anos sonha/alucina em uma casa de repouso; Elizabeth, vizinha apaixonada por ele quando criança vai visitá-lo com frequência. ele vive no passado; ela, no futuro, com mil problemas burocráticos & familiares. faz um combo entre polarizações forçadas + amores intergeneracionais + colagem como forma de arte & de compreender um mundo quebrado. trecho lindo de fazer chorar:
    “I'm tired of the news. I'm tired of the way it makes things spectacular that aren't, and deals so simplistically with what's truly appalling. I'm tired of the vitriol. I'm tired of anger. I'm tired of the meanness. I'm tired of selfishness. I'm tired of how we're doing nothing to stop it. I'm tired of how we're encouraging it. I'm tired of the violence that's on it's way, that's coming, that hasn't happened yet. I'm tired of liars. I'm tired of sanctified liars. I'm tired of how those liars have let this happen. I'm tired of having to wonder whether they did it out of stupidity or did it on purpose. I'm tired of lying governments. I'm tired of people not caring whether they're being lied to anymore. I'm tired of being made to feel this fearful.”

    - Winter é de 2017, imediatamente pós-Brexit. Art é um blogueirinho/servo da TI que contrata uma menina aleatória (a maravilhosa Lux) para fingir ser a namorada dele quando vai passar o natal na casa da mãe, Sophia. Sophia é uma senhora solitária num casarão do interior, alucinando com um bebê flutuante & odiando/amando a irmã, Iris, com quem não fala há décadas. uma história sobre as possibilidades & impossibilidades de diálogo + esculturas & cercas vistas de muitos ângulos + como as nossas escolhas nos separam & reúnem.

    - Spring saiu em 2019. Richard é diretor/produtor de TV em crise depois da morte de uma parceira de décadas; Brit é guarda de um "centro para refugiados"/prisão; Florence é uma infanta mágica. relaciona redes sociais & supermonitoramento + literatura & cartas + intolerância & comunidade.

    - Summer é de 2020. família em crise, especialmente os irmãos Robert & Sacha, dois adolescentes lidando como podem com o mundo que é o que é. em paralelo, outros dois irmãos: Daniel (lá do primeiro livro) continua sonhando, agora com a irmã, Hannah, de quem foi separado durante a segunda guerra. amarra cinema + acampamentos de refugiados & campos de concentração + comecinho da pandemia de COVID.

    os personagens perambulam de uma história para a outra, montando micro & macronarrativas num quebra-cabeça enorme & cheio de referências: cada livro, além de tratar das peripécias cotidianas & possíveis paralelos históricos, ainda costura tematicamente uma peça específica do shakespeare & uma artista & suas obras, que aparecem aqui & ali ao longo das páginas. eu sei que isso pode parecer excessivamente rebuscado & complicado, mas juro que a última coisa que essas combinações fazem é afastar a gente da história. o que toda essa rede de referências casadas consegue é mostrar que Arte não é um negócio elevado & distante, mas também é o que a gente faz na cozinha, na cama, na rua, nos portões, nas conversas, nos desencontros, nos desabafos.

    pois bem, o Companion piece é o que o nome bem diz: uma peça companheira, um acompanhamento, um pedacinho extra que não prolonga, mas complementa o quarteto, retomando & reforçando & desdobrando temas. aqui a Ali conta duas histórias (quase como o Como ser as duas coisas, outro livro sublime): temos uma pintora de meia idade cuidando do cachorro do pai, internado por problemas cardíacos no meio de um surto de COVID & também uma ferreira adolescente medieval que "vagabundeia" pelo espaço-tempo (com um V queimado no peito e tudo), acompanhada de um pássaro selvagem & um avental de ferramentas.

    vendo os caminhos que essas duas percorrem, a gente fica pensando sobre o que é companhia, sobre espécies companheiras, sobre isolamento & conexão, sobre arte como uma chave que abre qualquer fechadura, sobre o que era/é/será ser mulher, sobre dar o que não recebemos. aqui você também encontra: abandono materno, pandemias & epidemias (COVID & peste negra!), ex-colegas de faculdade, análise poética, feijão em lata, fechaduras, codependência, apatia, adoção, botas roubadas, WFH, desespero, esperança, trabalho honesto, fossas, (muita) morte, (muita) vida.

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