correntes

  • autoria: Olga Tokarczuk
  • tradução: Olga Baginska-Shinzato
  • leitura concluída: ☆☆☆☆☆

    honestíssimamente, não sei bem o que dizer sobre esse livro. é bom? muito. a Olga merece o nobel & muito mais? sim sim sim. recomendo? não a toda & qualquer hora. é uma leitura que precisa do(s) momento(s) certo(s), ou vai virar só um enfeite lindo na estante.

    pra começar, o livro é super fragmentado, então não parece exatamente um romance, no sentido de combo enredo + pesonagens + narrador + contexto, numa história com começo-meio-fim. as minhas duas últimas leituras também tinham essa vibe "quebrada", com múltiplas perspectivas & estratégias narrativas que espalham blocos que você precisa encaixar por conta própria, mas o que a Olga faz aqui é muito diferente do 2666 ou do Kentukis, nos quais o quebra-cabeça era possível de montar em um todo mais ou menos nítido. em Correntes há inúmeros personagens, que às vezes retornam, outras somem, levados por mil correntezas, temas & subtemas, & que nem sempre se encontram entre eles. nenhuma narrativa se fecha, os mistérios & motivos são, eles mesmos, começo-meio-fim. algumas seções têm um parágrafo ou dois; outras se estendem por mais de 20 páginas. PORÉM! cada uma delas é um deleite completo, independente das demais. esse livro também é, nesse sentido, bem diferente do Sobre os ossos dos mortos, que apesar de igualmente sinistro & lindo & combinar temas inesperados, tem uma estrutura bem mais direta.

    os temas em si também não são exatamente convencionais & palatáveis. é difícil explicar como tanta coisa diferente é interligada (tecida, urdida, tramada, amarrada, ainda que de um jeito bem solto & num tear às escuras). é um livro sobre viagem, peregrinação, solidão, comunidade, local x global, movimento & seus impactos. mas também é, na mesma intensidade, sobre o corpo humano, suas delicadezas & sua brutidão. foi iluminador & desacorçoante aprender sobre a história da anatomia & várias coleções de corpos & partes de corpos & meios de conservação & preservação pós-morte ao mesmo tempo em que o meu próprio corpo está se voltando contra mim, ou pelo menos contra o que eu fiz nele (versão redux: há quatro anos sofri uma fratura na coluna & tive de colocar placas & parafusos para segurar as vértebras no lugar; esse ano, meu corpo decidiu que não curtiu o titânio & está rejeitado o aparato; já estou fazendo os exames pré-operatórios para a retirada). a gente é um corpo ou tem um corpo? lembro que fiquei impressionadíssima com a exposição Corpos, quando esteve aqui no Brasil, porque é LOKO ver o maquinário desmontado. o tamanho dos órgãos nunca é o que a gente espera & é difícil aceitar como tudo fica encaixadinho aqui dentro. também lembro da maravilhosa Mariana Enriquez falando na FLIP que a mais aterrorizante história de terror é esta: imagine uma mente humana, capaz de tudo, criativa, genial... presa num corpo que adoece, envelhece & morre.

    como bônus & como não poderia deixar de ser quando se fala de viagem, há várias referências salpicadas ao meu mino Odisseu (o das muitas voltas) & à Penélope (que pensa em todas as direções). olhem só isso:
    À noite, o inferno paira sobre o mundo. Primeiro, deforma o espaço; tudo se estreita, compacta e imobiliza. [...]
    Depois, o inferno nos tira inclementemente do sono. Por vezes, nos coloca diante de imagens perturbadoras, terríveis ou sarcásticas - uma cabeça cortada, o corpo amado ensanguentado, ossos humanos em cinzas. Ah, sim, o inferno gosta de impressionar. Mas, na maioria das vezes, ele nos desperta sem grandes cerimônias - os olhos se abrem para a escuridão e logo em seguida desponta uma corrente de pensamentos; o olhar que mira um abismo escuro é a sua vanguarda. O cérebro noturno é Penélope, que à noite desfia o tapete de sentidos tramado durante o dia. Às vezes há um fio, em outras, são vários. O desenho complexo é decomposto em fatores primos - a trama e aurdidura. A trama é deixada à parte, restam linhas retas e paralelas, o código de barras do mundo.
    essas combinações nada óbvias é que fazem Correntes tão maravilhoso. cada seção propõe novas conexões plenas de espanto & talvez seja até mais prazeroso ler esse livro picadinho, tal & qual ele se apresenta. ENFIM. 5/5, picadinho sublime, viagem, corpo, mistério, trens, wikipédia, formol, mendiga embrulhada em mil roupas, ilhas, socorro! um feto na jarrinha.


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