as aventuras da china iron

  • autoria: Gabriela Cabezón Cámara
  • tradução:Silvia Massimini Felix
  • leitura concluída: ☆☆☆☆

    no fim do ano passado eu me dei de Natal uma assinatura anual da tortilla, clube de livros de literatura latina/hispânica. além de estar numa buena onda latina (como os últimos posts não me deixam negar), andava doida atrás do primeiro volume, o devastador Temporada de furacões, da mexicana Fernanda Melchor, que estava na minha lista de leitura há meses. & ele chegou, chutando tudo, cheio de dor & amor & personagens hediondos & delicados presos em ciclos & relacionamentos inescapáveis numa cidadezinha no meio do nada. depois veio a coleção de contos Rinha de galos, da equatoriana María Fernanda Ampuero, também violentíssimo, com faca no peito, na testa, no olho, no que você deixar descoberto na frente da página. & aí fui atropelada por leituras aleatórias & acabei deixando os outros volumes que chegaram se empilharem.

    mas todo livro tem sua hora (espero), & enfim chegou a hora ir pra cama (do hospital) com a China Iron, que me esperava(!) faz um par de meses. & fui. sabe quando você pega o livro porque ele tem basicamente o tamanho adequado pra esse momento (no caso: pequeno, fino, leve o suficiente pra ler segurando com os braços pra cima), mas quando você abre as páginas sai delas uma enxurrada feroz porque lá dentro tinha um universo bem dobradinho?

    pois então. esse livro é uma torrente louca & implacável de água céu poesia luz água céu sexo chá bichos sexo céu bois fogueiras água uísque céu barro sexo tortura sexo cogumelos alucinógenos água chá penas de flamingo céu bois árvores água água água árvores bichos céu.

    a gente acompanha uma garota (ou china, como se diz nos pampas) de 14 anos que escapa de um casamento forçado quando o marido (bruto, trovador, gerador de lero-lero) é inesperadamente "recrutado" pelo exército argentino pra defender/expandir o território lá em mil oitentos & bolinha. ela deixa os filhos com os vizinhos, arruma um cachorro ultraquerido & decide cair na estrada, pra longe do mundo reduzido a uma tapera em que ela vivia. & quem ela encontra senão uma Gata Quente Escocesa que está indo sozinha pra Terra Adentro, buscando a estância que ela & o marido foram incumbidos de administrar? (dou meia chance pra vocês adivinharem o que rola na carroça.)

    além de sexo & chá da tarde, também tem toda uma educação sentimental & autodescoberta & discussões sobre o que é civilização & progresso & o papel do gênero nisso tudo & como se tornar dono de um território feito de fluidez & como ser dono de si próprio quando se é, também, feito de fluidez. é lindo? é, muito! longe de mim achar ruim bisexuais rodando uns campos selvagens & aprontando mil confusões com o patriarcado (amo/sou). mas tem horas que as descrições são tão abarrotadas de luzes & sensações que não sabia mais o que estava lendo. parece um quadro com mil detalhes para os quais é impossível dar toda a atenção necessária, pelo menos por mim, agora.

    lendo os paratextos vi que a ideia aqui era uma retomada iconoclasta de um texto formador da literatura argentina (Martin Fierro), então certamente pra quem tem esse repertório (não é o meu caso), o buraco deve ser mais embaixo & certamente mais satisfatório. (eu tenho toda uma história familiar nos pampas, com subjugação indígena & pequenas rebeliões & ancestralidade misteriosa, mas literalmente não estou com saúde pra entrar nisso agora, perdão -_-)

    ah! também tem uns charmes com tradução/troca de línguas que eu adoro (ensinar seu amor a falar sua língua & aprender a língua dela & criar uma língua meio-termo: <3) & umas passagens tão diretas quanto líricas. olhem só:

    O cheiro das fibras de chá, marrons quase negras, partia das montanhas verdes da Índia e viajava até a Inglaterra sem perder a umidade nem o perfume adstringente que nasceu da lágrima que Buda fez cair pelos males do mundo, males que viajam também no chá: bebemos montanha verde e chuva e bebemos também o que a rainha bebe, bebemos rainha e bebemos trabalho e bebemos as costas alquebradas daquele que se agacha para cortar as folhas e o asno que as carrega. Graças aos motores a vapor já não bebemos as chicotadas nas costas dos remadores. Mas sim a asfixia dos mineiros do carvão. E assim é porque é assim; tudo o que vive, vive da morte de outro ou de outra coisa.

    em resumo: recomendo! 4/5, sexo, drogas & viagem astral nos pampas. dormir de conchinha! rios & riachos! prados sem fim! militares gorfando! canoas que carregam casas! atoleiros! um cachorro fofo chamado Estreya! vestidos de seda! um sujeito que encontra duas mulhers sozinhas no meio do nada & NÃO É HORRENDO! muito curry! dança gaúcha! o retorno inesperado do ex!


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