hamnet

  • autoria: Maggie O'Farrell
  • leitura concluída: ☆☆☆☆

    eu ainda sou um pouco, mas quando eu tinha metade da minha idade atual, eu era muito, muito, muito shakespeariana. a única coisa que comprei com meu primeiro salário de estagiária de 16 anos foi Shakespeare: a invenção do humano, do Harold Bloom. na minha graduação, fiz uma disciplina eletiva sobre Shakespeare & como trabalho final escrevi uma análise de três traduções brasileiras, confrontando as soluções & apagamentos do duplo sentido nas falas da Ofélia que foi só orgulho. meu blog juvenil era o Lady Macbitch (hah). quando fui pra Londres, assisti Como gostais no Globe, na seção dos pobres, embaixo de chuva, & pirei <3

    também adooooro as retomadas & adaptações & recontos. Hag-seed, a releitura de A tempestade feita pela Margaret Atwood, é perfeita (como não, né?), se passa num presídio & tem um velho dramaturgo assombrado pelo fantasma da filha. na série Shakespeare Re-Told, da BBC, Macbeth era num restaurante com três estrelas michelin (Duncan dono do restaurante, Macbeth chef talentoso, Lady Macbeth hostess!). 10 coisas que odeio em você é APENAS a melhor versão juvenil possível pr'A megera domada. & o que falar do Hamlet-Máquina do Heiner Müller? um troço louco & delicioso de menos de 10 páginas sobre a decadência do Ocidente.

    com o tempo a gente vai vendo que nem só de "clássicos" se constrói um repertório & fui ficando (um pouco) menos fanática conforme o meu leque de amores se abriu pelo mundo. mas a gente nunca supera de verdade os amores da juventude, né? por isso até me impressiono um pouco o tanto que demorei pra ler esse livro & o quanto estou me enrolando pra ver o Ophelia da Claire McCarthy. ora ora ora.

    como sempre, TERGIVERSO! vamos ao Hamnet. pra contextualizar: apesar de todo o lero-lero de houve um Shakespeare? era Shakespare um codinome secreto de um nobre? ou talvez um coletivo de autores?! eu compro total a ideia padrão de que Shakespeare era sim um único homem, que saiu de um cu de cidadezinha chamada Stratford-upon-Avon pra trabalhar nos teatros de Londres como ator/faz-tudo/dramaturgo etc.

    pelos registros históricos, esse sujeito tinha esposa e três filhos que ficaram na cidadezinha & foram melhorando de vida conforme a carreira dele foi levantando. um dos filhos se chamava Hamnet & morreu com 11 anos de causa não registrada, quatro anos antes do Shakespeare escrever Hamlet. toda crítica sobre a peça menciona, em maior ou menor grau, o filho morto. eu encontrei o menino até no Sandman do Neil Gaiman, viajando com o pai & chamando a atenção da Titânia, rainha das fadas.

    o ponto de partida da Maggie O'Farrell é a morte do Hamnet + a escrita de Hamlet + o fato de Shakespeare nunca ter mencionado em qualquer peça a peste, que tava comendo solto pela Inglaterra na época dele. como mesmo nas peças históricas ele dava um jeito de fazer críticas & menções a fatos contemporâneos, é no mínimo peculiar. então, sem spoiler, porque isso já é dito na quarta capa: a Maggie mata o Hamnet de peste bubônica. a gente já entra na história sabendo que o coitado que abre a primeira página todo pimpão não vai chegar assim no fim do livro.

    mas a narrativa é muito mais do que um menino morto, é a construção do mundo em que ele viveu. amei que todo mundo tem nome, geralmente o que consta no registro histórico mesmo, mas o William Shakespeare ele-mesmo só é mencionado em relação aos outros: ele é o tutor, o pai, o marido. outras pessoas têm bem mais palco & mais falas que ele. só achei que, no fim, o fato dele aparecer muito pouco na narrativa é tanto qualidade quanto defeito.

    qualidade porque a gente tem uma visão muito mais ampla de pessoas que geralmente ficam de escanteio quando o foco é sempre no Gênio. aqueles que fazem o dia a dia doméstico, a população rural, as mulheres, as crianças. a construção do personagem da Agnes, a mãe, é muito interessante (tá na beirinha da caricatura das mulheres-que-correm-com-os-lobos, mas escapa por um fio porque o universo interior dela é muito amplo): filha de curandeira, domadora de falcões, meio médium mas totalmente pé-no-chão, cuidando das abelhas & colhendo plantas & fazendo unguentos. o Hamnet, coitado, é um querido, 100% retrato da cabeça de um menino de 11 anos, vendo tudo, vendo nada, distraído com um passarinho passando, doido pra aprontar, com o coração cheio & os pés imundos.

    defeito porque no clímax da história, quando chega a hora da gente ver a ligação entre o menino & a peça, fica um grande UÉ?. as ausências do Shakespare constroem muito da narrativa, mas senti falta de uma presença, por pontual que fosse, pra fazer essa ponte. porque mais ninguém consegue, né? também tem outras loucurinhas na história que fiquei "ah tá", mas nada que pese tanto quanto a falta dessa amarração. a cena final, no Globe Theater, é maravilhosa (é por ela que o livro fica com 4 estrelas, ao invés de 3), mas me deixou um gostinho de quero mais que não é como o das histórias que são, por projeto, de final aberto, sabe?

    nosso resumo tradicional: 4/5! árvores! sexo na despensa! amor amor amor! gerador de lero-lero! luvas! parto na floresta! plantas! gatinhos bebês! falcões! febre! caroços! espíritos! estudando latim! crianças fofas & chatas! londres fedida demais! de quem era essa pulseira? desolação & luto! lembra-te de mim.

  • Comentários

    Postar um comentário