preciso começar confessando que eu sou saramaguiana & até demais: li meu primeiro (Todos os nomes) com 15 anos, lá quando ele ganhou o Nobel, tive a felicidade de ver o homem pessoalmente no lançamento do A caverna, ele é o segundo autor com mais obras aqui em casa (atrás só da rainha Atwood) & assisto José e Pilar toda vez que passa na tv. por essas & outras, tenho me limitado a ler um Saramago por ano desde que ele morreu - porque de onde vieram as belezas (& horrores) que ele escreveu, não vem mais nada. como ele era superprodutivo, escrevendo & publicado praticamente todo ano, duvido que tenha algum baú cheio de inéditos só esperando pra ser descoberto. & suspeito que a Pilar também não é do tipo que ia ficar juntando fiapinhos pra edição póstuma, como às vezes rola por aí.
com essas er, "credenciais", me permito dizer que: Saramago é Saramago, né. mesmo quando é meia boca é melhor que uma galera no auge. estou dizendo que esse livro é meia boca? pra um Saramago, é. me pareceu um rascunho das coisas maravilhosas que vieram depois, mas com um jeitinho meio machista datado (até fui ver o ano da primeira edição: 1986, ok) & uns personagens que às vezes parecem ser quase-que uma pessoa só & não uma renca de universos próprios, como nos outros livros.
ainda assim, a ideia central é genial: a península ibérica simplesmente se descola da Europa & sai vagando & causando tretas diplomáticas & caos social generalizado & reviravoltas emocionais (navegar é preciso, viver não é preciso). no meio dessa loucura, um grupinho de gentes se junta & acaba vagando aqui & acolá pelas eiras & beiras dessa ilha também vagante, acompanhado/guiado por um primo distante (francês!) do cão das lágrimas do Ensaio sobre a cegueira.
o livro tem cenas muito poéticas & diálogos lindíssimos (bem saramaguianos), como esses:
Os helicópteros iam e vinham sem descanso, observavam os picos e os vales, abarrotados de peritos e especialistas de tudo quanto parecesse ser de alguma utilidade, geólogos, esses por direito próprio, apesar de agora lhes estar vedado o trabalho de campo, sismólogos, perplexos, porque a terra teimava em manter-se firme, sem um estremecimento, ao menos uma vibração, e também vulcanólogos, secretamente esperançados, não obstante estar o céu limpo, despejado de fumos e fogos, perfeito e liso azul de Agosto, o rastilho de pólvora não passou de comparação, é um perigo tomá-las à letra, esta e outras, se antes não aprendemos a estar prevenidos. Não podia a força humana nada a favor de uma cordilheira que se abria como uma romã, sem dor aparente, e apenas, quem somos nós para o saber, porque amadurecera e chegara o seu tempo.&
No escritório do turismo uma empregada perguntou-lhes se eram arqueólogos ou antropólogos portugueses, que fossem portugueses percebia-se logo, mas antropólogos e arqueólogos porquê, Porque a Orce, geralmente, só vão desses, há anos foi descoberto, lá perto, em Venta Micena, o europeu mais antigo de que há registro, Um europeu inteiro, perguntou José Anaiço, Só um crânio, mas velho, com idade entre um milhão e trezentos mil e um milhão e quatrocentos mil anos, E há a certeza de que se trata de um homem, quis saber, subtilmente, Joaquim Sassa, ao que Maria Dolores respondeu com um sorriso de entendimento, Quando se encontram vestígios humanos antigos, são sempre homens, o Homem de Cro-Magnon, o Homem de Neanderthal, o Homem de Steinheim, o Homem de Swanscombe, o Homem de Pequim, o Homem de Heidelberg, o Homem de Java, naquele tempo não havia mulheres, a Eva ainda não tinha sido criada, depois criada ficou, Você é irónica, Não, sou antropóloga de formação e feminista por irritação.porém, entretanto, todavia: não consigo deixar de buscar nos personagens & na trama o que Poderia Ter Sido. como de praxe, isso diz mais sobre mim do que sobre o livro, né? (ah, se o governo fosse como o do Ensaio sobre a lucidez! se alguém tivesse uma família como a da Caverna! se um dos romances tivesse o desejo obsessivo de Todos os nomes!) vale a leitura? vale demais. mas, se você estiver querendo começar a saramaguear, recomendaria outros na frente (como o Intermitências da morte ou O evangelho segundo Jesus Cristo).
aqui tem: meio-que realismo mágico, road trip (numa carroça), ocupações, bicho é melhor que gente, migrações, governo de emergência, ó mar salgado, pássaros, desunião europeia, sexo por caridade (q?), riscos no chão, fronteiras.
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