os urubus sem penas

  • autoria: Julio Ramón Ribeyro
  • tradução: Silvia Massimini Felixa
  • leitura concluída: ☆☆☆☆

    essa coletânea de contos é o livro do bimestre da Tortilla, o mesmo clubinho que mandou o dulcíssimo As aventuras da China Iron & o amarguíssimo Temporada de furacões (que virá em post futuro porque - SPOILER - farei um especial de favoritos do ano!). passei ele na frente das outras mil-e-uma leituras em andamento porque todas elas são de fôlego & esse é bem fininho (só 111 páginas) & me dá uma angústia enorme ler ler ler & não acabar nunca. então, me abraçando no colete salva-vidas do conto, sinto que posso continuar navegando pelas páginas dos outros sem me afogar.

    além disso, não resisto a uma capa sinistra & essa é uma pérola do sinistro, né? tem porco, que é um bicho bem limítrofe do selvagem & do racional (& que jamais verei do mesmo jeito depois dos pigoons da trilogia Maddaddam da Atwood), em foto desfocada, com um título que fala de urubus, outro bicho cabuloso. também amei o nome da tradutora na capa, um reconhecimento muito digno pra essa galera que literalmente reescreve os textos & geralmente fica escondidinha na folha de rosto ou só na ficha catalográfica.

    então vamos aos urubus. o livro é inédito no Brasil, apesar de ser um clássico da literatura peruana, publicado em 1955 (me diz o prefácio, porque eu nunca tinha nem ouvido falar). & já começa com esse chute na porta:
    Às seis da manhã, a cidade se levanta na ponta dos pés e começa a dar seus primeiros passos. Uma névoa fina dissolve o perfil dos objetos e cria como uma atmosfera encantada. Parece que as pessoas que percorrem a cidade a essa hora são feitas de outra substância, que pertencem a uma espécie de vida fantasmagórica. As beatas se arrastam com dificuldade até desaparecer nos pórticos das igrejas. Os noctívagos, amaciados pela noite, voltam para casa enrolados em cachecóis e melancolia. Os lixeiros começam seu passeio sinistro pela avenida Pardo, munidos de vassouras e carrinhos. A essa hora se veem também operários indo em direção à parada do bonde, policiais bocejando encostados nas árvores, entregadores de jornal roxos de frio, empregadas pondo os latões de lixo para fora. A essa hora, por fim, como se chamados por uma ordem misteriosa, aparecem os urubus sem penas.
    que me lembrou instantaneamente Manguetown:
    estou enfiado na lama
    é um bairro sujo
    onde os urubus têm casas
    e eu não tenho asas
    mas estou aqui em minha casa
    onde os urubus têm asas
    & tem tudo a ver mesmo. porque os contos de pobreza, angústias, abandonos, carinhos, malandragens & contratempos cotidianos têm como pano de fundo o Peru dos anos 1950, mas podiam ser em Recife, 1996, ou aqui na minha porta em 2021 (tive que digitar três vezes - primeiro saiu 2001, depois 2011... enfim). são histórias tristes & desesperançadas, mas também com uma beleza crua, como quando a gente limpa um canto de uma janela imunda pra deixar um tantinho de luz entrar. narrativas curtas, realistas, com uma linguagem direta, mas não brutal. as frases apenas são. (obrigada Silvia pela tradução alcançada!) fiquei muito curiosa pra ler mais desse Outro Julio, que escreveu na mesma língua & ao mesmo tempo que meu mino Cortázar, rei dos contistas, mas de uma perspectiva & em um estilo completamente diferentes.

    além de ter temas superatuais & relevantes & cortantes, esse é o tipo de leitura que dá pra encaixar em qualquer intervalinho de tempo, então recomendo muito pra quem anda com dificuldades de ler ou simplesmente não acha uma pausa onde encaixar um livro. 4/5, rápido & rasteiro, silêncio & barulho na cidade, O Animalesco, quedas providenciais, gente encurralada literal & figurativamente, mulheres pendurando roupas, porcos, cães, gentes.

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