lady oracle (madame oráculo)

  • autoria: Margaret Atwood
  • leitura concluída: ☆☆☆☆

    eis o terceiro volume do meu projeto de leituras atwoodianas (vulgo PLAt), publicado em 1976! a essa altura, a Atwood já era uma escritora conhecida (pelo menos no Canadá), com volumes premiados de poesia além de dois romances sinistros pra chamar de seus.

    aqui nós temos, de novo, uma protagonista cheia de questões sobre identidade & lutando batalhas contínuas contra os papéis de gênero, mas muito mais engraçada & disposta a quebrar a cara do que as anteriores. é interessante porque, ao contrário da Marian em The edible woman & da protagonista-sem-nome do Surfacing, a Joan Foster parece, superficialmente, muito mais bem-resolvida & socialmente adaptada, mas também tem um zilhão de esqueletos varridos pra baixo do tapete. pra começar, ela vive um punhado de vidas duplas empilhadas: autora de um livro de poesia cult & hypado em tour pelo país, mas também autora de romances pseudogóticos publicados com pseudônimo; esposa dedicada de um intelectual revoltadinho, mas também amante de um artista que faz exposições com cadáveres de animais recolhidos nas estradas; mulher sedutora que tem todas as características de uma femme fatale (corpão, cabelão, vestidão etc.), mas também adolescente obesa torturada pelas colegas & que se vê como a fat lady em um show de aberrações.

    além disso, esse é enfim um livro da Atwood com uma relação mãe-filha pra cravar os dentes & sentir gosto de sangue. acho muito difícil pensar em papéis de gênero, ser ou tornar-se mulher, sem pensar no que é ser filha. o olhar de uma menina pra mãe tem um peso enorme, assim com o o olhar da mãe sobre uma menina. eu, pelo menos, tomei muitas decisões sobre o tipo de pessoa que eu queria ser (ou não) julgando o que a minha mãe era (ou não era). & a Joan definitivamente quer & não quer ser a mãe, de mil jeitos diferentes.

    outra coisa peculiar, que talvez fale mais sobre mim do que sobre o livro: nessa releitura, descobri que trechos que eu lembrava vividamente como sendo de outras histórias eram, na verdade, da vida da Joan. tem uma cena na Itália, em que ela toma banho de sol coberta por toalhas porque esqueceu o protetor solar, que eu jurava que eram do A filha perdida, da Ferrante. também tem uma parte em que a Joan ainda criança é amarrada pelas colegas escoteiras(!) em um descampado embaixo de uma ponte (!!) pra ser encontrada por um tarado (!!!), que pra mim estava no Cat's eye, meu romance preferido da Atwood. isso me fez ficar pensando o que essas histórias & suas protagonistas têm em comum, tanto entre elas quanto comigo, & o que essas sabotagens & autossabotagens podem apontar.

    mas, vamos lá, um resumo: a Joan Foster começa a história tendo abandonado a vida de esposa-autora-celebridade após publicar um livro de poesia quase-que literalmente psicografado. inesperadamente, ela acabou alcançando um nível de visibilidade absurdo pra alguém que fez o possível pra soterrar cada passo que deu no passado, dos embates com a mãe à sequência impagável de boys-lixo com quem ela se relaciona (como um aristrocrata russo em exílio que escreve "romances de enfermeira", por exemplo). no ápice do desespero, sofrendo chantagem por um sujeito de bigodinho sujo & de saco cheio do marido que se interessa por qualquer causa por um total de 0.5 segundos, ela faz o que qualquer pessoa sã faria: simula ter morrido & foge para outro continente. ENFIM, escolhas.

    não bastando essa loucura toda, o livro ainda é entremeado por trechos do romanção que a Joan está escrevendo pra se sustentar na vida de fugitiva, em que uma ourives vai para uma mansão consertar as joias de uma ricaça & aos poucos acaba se envolvendo com o sedutor anti-herói que a contratou, além de se sentir irresistivelmente atraída para o labirinto(!) no qual as esposas anteriores do sujeito desapareceram. (curiosidade: no fim do volume que eu li tem uma entrevista com a Atwood em que ela diz que até pensou em terminar essa história & publicar com o pseudônimo da Joan, mas desistiu porque a ideia era melhor do que o processo de levar a ideia a cabo, hah.)

    então se você curte dramas & fugas & as tretas por trás da literatura, esse livro é pra você! aqui você encontra: dramas familiares, autora de romanção estilo Sabrina, ativistas patéticos, aristrocratas russos, espiritismo, herança, morte forjada, bigodinhos, mania de perseguição, botas vitorianas, dietas horríveis, traumas de guerra, móveis cobertos de plástico, booktours, chantagem, roupas enterradas, valsas, arquétipos de mulher, escritores que vivem de escrever.


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